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segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

O DIA EM QUE A CHUVA PASSOU

(ilustração de Coelhão para material didático de Curaçá. Aqui as cores foram invertidas)

Josemar da Silva Martins (Pinzoh)

Lembro a data, claro! Pois, nem faz muito tempo. Dia 21 de janeiro. Noite. Ninguém estava esperando. Todas as janelas estavam abertas, para arrefecer os lares, pois haviam sido quentes aquelas últimas horas. As pessoas estavam nas calçadas, nas redes e até havia algumas nos bares, matando a sede que sobrou do carnaval. Mas meio tristes, estas pessoas dos bares. Poucas. Cansadas. Pouco barulho havia nas ruas – pelo menos não aquele barulho que ouvimos todas as noites, ou melhor, todos os dias; aliás, o dia todo. Aquela excitação não se via. Aquela Fuleragem de sempre havia anoitecido de ressaca, porque tinha amanhecido em farra. Sexo, só simulação: anulação do sexo – quando todo mundo imagina o contrário, e embora estivesse muito quente!

Havia, no entanto, outro barulho, exatamente porque havia sido quente este dia. Todo mundo estava reclamando. E abriam as janelas, abusavam dos ventiladores, dos condicionadores de ar, aqueles que os tinham. Aqueles que não os tinham, abriam as janelas, se abanavam, abanavam uns aos outros. Gentileza! A maior das gentilezas seria abanar o outro? É bom! E bom mesmo é ser abanado, embora a gente já tenha se desacostumado disso: ser abanado. Mas, de qualquer forma, havia esse outro barulho das pessoas abanando umas às outras, onde as havia – quanto mais aquelas que não possuíam condicionadores de ar. As que os possuíam tinham que agüentar os seus barulhos.

Outros barulhos, sim, mas, pensando bem, bem menos que nos dias normais. E o dia quente! Pegando fogo! Você saudava uma pessoa e ela logo lhe dizia: “tá quente hoje, heim!?” Outros diziam: “para onde vamos com tanta quentura, heim!?” Então você ficava ouvindo muitos “heins” das pessoas, quando ia cumprimentá-las. E há os que respondem “ôôôôôôô!” e só. É que este “ô!” alongado serve para qualquer coisa. Tanto para afirmações quanto para negações e “quanto mais, principalmente”. Você tanto poderia dizer: “tá quente, viu?” e a pessoa responder: “ôôôôôôô!” Mas se dissesse, ao contrário, que estava frio, o mesmo “ôôôôôô!” poderia arrematar a conversa de forma conclusiva.

O fato é que estava quente e ninguém achava que iria chover, pois outros dias também foram tão quentes quanto, e chuva necas. Porque chuva por aqui “é lá um se acaso”. Muitas vezes chega até a ser “de-an-em-ano”. Então todos ficaram assim um tanto esparramados por aí, à vontade, os homens com as barrigas de fora – e quanto maiores, mais expostas; ficam eles alisando-as como se fossem troféus – e as mulheres abanando as pernas. São os dias em que as mulheres vestem roupas mais leves. Jogam fora os sutiãs e deixam aqueles bicos de peito à mostra. Descuidados bicos. Até os telhados das casas foram também esquecidos, e o vento ou os gatos já haviam esbandalhado as telhas. E quem liga? Não chove mesmo! Alguns desejavam até que chovesse para não ser preciso molhar as plantinhas do jardim.

Mas, de repente, uma nuvem ainda rarefeita, cobriu a lua. E quem ligou! Muita gente nem viu, ocupada que estava com o Big Brother. E começou a haver alguns estrondos, mas pouca gente ouvia, porque o volume da TV estava alto. E ninguém prestou atenção nem na informação meteorológica, e, portanto, não se sabe nem se foi avisado que choveria. Certamente houve alguma incongruência entre o que foi noticiado e o que, de fato, aconteceu. Ultimamente anda havendo esses episódios que o Sistema não consegue resolver completamente. O Sistema certamente não previu aquela chuva. E se não houve esta previsão, significa que ainda há esperança!

Mas os estrondos foram ficando mais nítidos, mais fortes e foram, aos poucos, ultrapassando o som da TV, e quando alguém saiu à janela para apurar o ouvido e ter certeza do que era, o trovão estalou seu estampido bem ali em cima, e o relâmpago crispou o céu, franzindo uma região inteira do espaço celestial. A impressão era que aquele relâmpago teria trincado o céu, mas não chegou a tanto. Foi suficiente, no entanto, para que uma parte das pessoas se dessem conta de que a chuva estava a caminho. Algumas outras andavam pregadas no computador, alimentando vícios de MSN, orkut, etc., quando foram surpreendidas com um rápido apagão, quase imperceptível, que desligou a máquina tão depressa que quando elas cairam em si, a CPU já vinha se reiniciando por conta própria. E começou a chover!

Que beleza a chuva! A gente já nem lembrava como era, tamanho é o nosso descuido, como qualquer um pode ver. Tamanha é a demora dela em retornar. Mesmo que não precise, mesmo que haja água suficiente na torneira, a gente se habiatua a pedir a Deus que a mande. E quando ela chega, é real. É tão real que não há simulação que a possa realizar. Porque podem haver os efeitos especiais todos – até mais reais que o real – mas a composição de luz, som, cheiro, prazer e medo humano, não é possível de reprodução em igual teor. Como se diria no sertão “eu pego é posta”. E o cheiro então, quero ver quem simula. O cheiro de chuva, eu tenho para mim, que só se sente no sertão. Não tenho sentido isso na cidade grande. Talvez porque ali o cheiro é diferente, eu não o reconheça, porque está misturado ao cheiro de borracha, é um cheiro meio queimado. Esse eu já senti. Certamente há um outro cheio de chuva que vem do mar, e aqueles menos apressados que se refestelam nas janelas, redes nos alpendres ou sacadas de toda a costa, podem senti-lo. Mas o cheiro de chuva no sertão chega bem antes com sua singularidade - essa palavra que está na moda.

Cheiro de chuva no sertão é cheiro de terra molhada. É como se a terra tivesse concentrado suas reservas de aromas, emudecidos entre os cacos de tudo que é coisa jogada fora, entulhada e esquecida. A própria terra, esquecida, mal-tratada, pisoteada, abandonada, adormecida... estremece, se excita quando os primeiros pingos tocam seu corpo. E se arreganha! E exala todos os seus aromas de terra fêmea, atiçados pela fêmea chuva. Cheiro de fêmeas! Quase cheiro de cio! E é cio! Algumas seivas esperavam este momento para deslizarem para o centro das genitálias das plantas, e se lambuzarem noutras seivas, e engravidarem seus pares. Ou então, há todo um estoque de fecundações consolidadas, esperando apenas este “faça-se” que a chuva trás. Não demora. As coisas vão passando do estado de não-ser ao ser. Uma passagem à existência: poiésis. Daí a pouco há plantinhas estufando de tudo que é lugar, rompendo o casco duro da terra. A chuva é gozo! Sexo pesado de algumas forças da natureza, que cruzam seus negativos com seus positivos, sem ligarem para a acusação de dicotomia que os pós-modernos podem lhe imputar, e gozam! Gozam com mil trovões, e soltam raios pelas franjas.

Quando a gente era criança, junto com calor a gente sentia o ar mudando, o céu se turvando com nuvens pesadas. A gente sabia que era nuvem carregada. E vinha um vento fazendo esvoaçar as catingueiras, as baraúnas, as caraibeiras, os panos no varal, fazendo escapulir os chapéus de palha, arrebitando as anáguas das moças. Era a hora de deixar a estripulia e correr para casa. Ainda mais quando um trovão supapava tudo e a gente jurava que um raio caíra bem ali do lado, "eu cegue, se não foi". A gente via a manga de chuva se formando, como uma cortina que vinha muito rápido fechando tudo. Sentia o cheiro, ouvia o barulho. Aí chovia pingos grossos, e até chuva de pedra. Tem menino que ficava olhando o céu para ver de onde aqueles pingos descambavam. E depois que passava aquela tromba d’água, a gente até arriscava pular na chuva, no terreiro, tomar banho de bica, correr pelas veredas encharcadas, pisar descalço na lama...

Havia o momento em que a sonoplastia mudava: outro som solicitava que a gente apurasse o ouvido. Era o riacho. Todas as pequenas valas e barrocas, todas as veredas afundadas de tanta gente pisar, iam oferecendo pequenas porções de água para nutrir os córregos. E estes repassavam seus volumes para os córregos maiores, e daí para os riachos menores, que despejavam, por sua vez, no riacho principal, o Riacho do Jaquinicó. A gente ouvia o barulho da cabeceira da água. Uma língua barrenta que ia fazendo chiar a areia do riacho, chiado que ecoava nas encostas, que repercutia nos baixios, e explorava todos os acústicos. A gente corria para saudar a água, saia pinotando na frente da língua d’água, às vezes gritando "nem me pega!".

A chuva trás sempre esses outros barulhos. Sobretudo na cidade, são outros. Os pingos, os respingos. No chão, no telhado esbandalhado, nas ruas asfaltadas, nos tetos dos carros, nos galhos das árvores, nas janelas abertas. Os primeiros pingos são grossos, pesados, mal-educados. Estremecemos com eles e seus estrondos, com os raios; tomamos sustos, sofremos de muitos apertos no coração, e além de tudo isso há as goteiras. Durma com um barulho deste! Esta parte, aliás, não é nada erótica. Não há tesão com uma goteira no meio de dois, ensopando a cama. A não ser que o casal seja meio obcecado por novos experimentos e resolva posicionar-se de modo a aproveitar a goteira para esquentar a relação. Duvido! O fato é que é preciso correr para fechar as janelas, todas que haviam sido abertas para arrefecer os lares, desarmar as redes – nossa! Esquecemos disto! – recolher as cadeiras das calçadas. Conferir as goteiras, as manchas no gesso, algum vinco de água descendo pelo canto... Gente que não acordou com os trovões e relâmpagos, de repente, escorrega um pé da cama e se vê com água pela canela. Toma um susto, pula da cama, arrisca a cair... Mas, o fato é que a casa já está tomada de água. Vazou pela telha quebrada ou esbandalhada pelo cio dos gatos, escorreu do forro de gesso, já encharcado, desceu pela parede. Entrou pela porta da frente, vindo das ruas e bueiros que não lhe deram passagem.

E em pouco tempo as casas estão se enchendo de água, inicialmente a partir do telhado; as ruas ficando alagadas, os bueiros entupindo aos poucos com nosso lixo de cada dia, que nós jogamos por aí, de qualquer jeito, porque somos deseducados demais, e folgados. E depois a água subindo, procurando outros lugares por onde andar, por onde descer, por onde entrar na terra – que é o destino de toda água – mas os bueiros entupidos, as ruas calçadas ou asfaltadas e a água sem ter por onde passar, ou, como se diz por aí, por onde “vazar”; e ela vai se acumulando aqui e ali, e daqui começa a escorrer para ali, e assim vai, uma poça se juntando à outra, a reunião de todas as águas empoçadas, represadas, interditadas, até que começam a entrar nas nossas casas. Sem pedir licença, que a água e a chuva não precisam disso.

O jardim está molhado! Não será preciso ter esse trabalho. Mas é preciso acudir a cachorra parida, agasalhar os filhotes; convencê-la a superar o medo que ela tem de relâmpagos e trovões (os cachorros vão assimilando o medo humano; vão ficando um pouco humanos), e ficar com os filhos dando-lhes calor, carinho e segurança. Mas é preciso dar-lhe um agasalho enxuto, que aqueles panos que estavam lá, já estão encharcados. E é preciso achar um rodo para retirar a água do quarto, ou achar alguns panos com bastante capacidade absorvente, talvez alguma toalha velha que foi rebaixada a pano de chão, para fazer uma barreirinha numa das portas; afastar a cama do lugar e desocupar um balde para aparar a goteira... Puxar, com um rodo largo que felizmente há na casa, a água empoçada e ajudá-la a entrar pelo cano, antes que isso nos ocorra. E haja noite para tanta água!

Quantas alegrias trás a chuva! Quantas memórias, e quantos transtornos ela trás também. E mesmo assim é sempre a ela que esperamos, como bonança divina, como dádiva da natureza, porque nossos textos ainda não a mudaram. Nem sempre sabemos disso, mas é. Ela, a chuva, de alguma forma, acaba sendo um modo ou um elo de comunicação nossa com outra dimensão de nossa existência. Há uma magia na chuva, um vigor, um mistério. Ainda não dominamos modos de detê-la ou de educá-la! A chuva é esta excedência em relação a nossas intenções humanas! E, em circunstâncias particulares como a nossa, onde desacostumamos dela e dos seus afagos e afogamentos, ela acaba sendo o termômetro de nossa desorganização. E ela é tanta que não sabemos nem onde guardamos as velas, caso a luz vá-se embora. E quando isso ocorre, é aquela agonia: gente queimando os dedos, andando pela casa com fósforos acessos, ou isqueiros. Aqueles que se acostumaram com a chama elétrica do fogão agora não podem acendê-la, e nem acham os fósforos e têm que tatear pela casa. Nem as lanternas que viviam pela casa, as crianças brincando e gastando pilha sem necessidade, agora se escafederam; quando as encontramos, depois de fuçar pela casa toda, elas estão com as pilhas estouradas dentro, e há uma sujeira ácida apodrecida tomando conta de tudo e impedindo que novas pilhas, se por acaso houvesse, façam contato com as partes metálicas e permitam acender o foquite.

A chuva no sertão, de tão desacostumados que estamos dela, nos pega definitivamente de calças curtas. A chuva passa para nos dar uma bronca – ouçamos o ronco do trovão, olhemos nos olhos do corisco! Ela nos diz que somos um fracsso em organização, sujamos tudo, deixamos tudo largado, emporcalhado. Depois que a chuva passa há uma imagem diferente das ruas, o lixo está mais à mostra do que nunca, e só então a gente pensa – se é que pensa, pois nosso tempo pensa menos. Às vezes não presta nem atenção na chuva, e ela já foi. As águas já estão longe, sabe-se lá onde. Quem tem sua cisterna, sabe-se lá se pelo menos guardou alguma, para os tempos em que haverá muito menos água no mundo inteiro! É tudo isso! Mas o fato é que a chuva passou – e ninguém garante que ela volte tão cedo!

sábado, 19 de janeiro de 2008

A SURRA IMPROVISADA

Josemar da Silva Martins (Pinzoh)

Desde o primeiro dia de aula que vinha havendo umas provocações, uns insultos dissimulados ou explícitos. Tudo começou quando os sobrinhos da professora e netos do velho patriarca coronelzinho, dono da fazenda onde ficava a escola, quiseram que eu brigasse com um de seus irmãos menores, para ver quem era mais homem. Isso era uma prova maluca, pois tínhamos apenas algo em torno dos sete ou oito anos de idade. Esses os sobrinhos menores da professora eram do meu tope, como se dizia, e havia uma ética de fazer duelarem apenas aqueles que mantinham condições físicas parecidas. Então, naquele primeiro dia de aula, quando saímos da escola, no meio da baixa que ficava entre a escola e a casa grande da fazenda do velho patriarca coronelzinho, pai da professora e avô dos provocadores, fui interditado:

– Aí! Você não disse que é bom! Quero ver é você ganhar para este daí!

E me empurraram um dos irmãos do meu tamanho. Foi o desfecho das provocações miúdas que duraram toda a manhã daquele primeiro dia de aula. Era como se fosse um ritual de passagem, e eu, sendo o menor daquela turma, teria que dar provas de que poderia continuar vindo à escola sem problemas. Mas meu pai, que era rigoroso, havia avisado: “não quero confusão. Se se envolver em briga, quando chegar em casa vai se haver comigo. Se apanhar, quando chegar em casa, apanha. Se bater, apanha do mesmo jeito”. Não tinha escapatória. A situação era do tipo “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. E bastou essa lembrança das palavras do meu pai, para que eu começasse a corar, a tremer e a prenunciar um choro. Puta constrangimento! Foi o jeito ser sincero:

– Meu pai disse que se eu brigasse, ele me batia quando chegasse em casa.

A situação não melhorou. Os muitos meninos que estavam ali, ansiosos pela “farra”, começaram a gritar em coro: “correu, corrão, com medo do gavião”. E começaram a empurrar uns aos outros para cima de mim. O jeito foi abrir o berreiro. Meu irmão me puxou e fomos embora sob vaias e insultos, cujo mais difícil de ouvir era a adjetivação de “covarde”.

Esta situação foi suficiente para que nos outros dias de aula, os insultos e provocações só fizessem aumentar. Até pirralhos mais amarelos do que eu começaram e me insultar. Um deles, no entanto, era o Edvaldo, filho de Bernardino, do Papagaio. Este era um moleque insolente. Metido a valente! Vivia cumprindo expediente que os frouxos sobrinhos da professora e netos do dono da fazenda, não conseguiam por conta própria. Arreliava. Insultava. Provocava. Com isso ia intimidando, até que se auto-proclamava o vencedor das contendas. Na verdade era uma espécie de capataz daqueles sobrinhos da professora, que se consideravam donos do pedaço só porque a escola ficava em suas terras. E o avô de vez em quando até ia à escola, com revolver no coldre, espiar se alguém estava fazendo alguma estripulia e intimidar, exceto aos seus netos. Esses aí, como tinham essa proteção, se aventuravam em algumas confusões, mas como não tinham coragem de dar cabo de suas arrelias por conta própria, usavam o Edvaldo como escudo.

De vez em quando nosso pai nos incumbia de aproveitarmos a ida à escola para trazermos água da cacimba do velho coronelzinho, que era uma das duas únicas fontes de água, naquele período de seca: a outra era o tanque do Juvino. Mas a cacimba do velho coronelzinho era bem mais perto da escola e da nossa casa. Então a gente levava o jegue com a cangalha e dois barris pendurados nela, um de um lado e outro do outro. Deixávamos o jegue amarrado em alguma sombra rala ao lado da escola, durante toda a manhã. Quando a aula acabava, descíamos até a cacimba, enchíamos os dois barris, feitos de borracha de pneu de caminhão, e pendurávamos na cangalha. Esta etapa era curiosa: eu, bem menor que meu irmão mais velho, ajudava ele a colocar o primeiro barril, de um lado, e ficava escorando este, para que não despencasse com cangalha e tudo, enquanto meu irmão se virava para colocar o outro barril do outro lado. Depois de ambos enganchados nos ganchos da cangalha, os pesos se equilibravam.

Foi quando ainda estávamos pelejando com os barris de água que eles chegaram. Eu brincava com o Raimundo de Cizino, que era um rapaz já, quando eles insultaram:

– Quero ver se você é bom é se enfrentar este daqui.

“Este daqui” era o Edvaldo. E o seboso não esperou nem eu responder, veio vindo em minha direção, aproveitando que eu havia afrouxado no primeiro dia de aula, e foi logo retirando a bolsa com os livros e jogando no chão, para ficar livre para a luta. Estávamos embaixo de uma daquelas enormes caraibeiras que adornam a margem do riacho em toda aquela região. Nesse período de seca, era costume cortar os galhos das caraibeiras para servir como forragem para os animais caprinos e ouvinos. Os galhos eram espalhados embaixo da árvore e eram ali mesmo consumidos pelos animais. Depois de desfolhados restavam apenas varas finas, com tamanhos entre um e dois metros. Naquele momento essas varas estavam também amolecidas pelo sol. “São chicotes perfeitos”, pensei.

E lá vinha o Edvaldo, maior do que eu, com ares de vitória antecipada. Eu, mirrado, começando a tremer, entre o jumento com a cangalha e os barris de água, o meu irmão – que não se envolvia – e as pernas do Raimundo de Cizino que, sendo rapaz feito, achava ético também não se envolver. E lá vinha o Edvaldo, inflando as esporas como galo de briga. Se ele me agarrasse eu estava frito. Bastaria uma rasteira para me por ao chão e zerar minha honra, já abalada desde o primeiro dia de aula. E eu, amarelo, com a boca seca, sem querer rogar ajuda aos maiores que estavam do meu lado, olhei aquelas varas desfolhadas e molengas de caraibeiras: “o jeito é não deixar nem ele chegar perto”.

Dei de garra de uma daquelas varas molengas e parti para cima do Edvaldo, que parece não ter acreditado na minha reação, que era, naquele momento, mero desespero. Ele insinuou que iria pegar também uma daquelas varas, mas aí já era tarde: eu desfiei uma seqüência de lapadas no Edvaldo, nas costas, nas pernas, na cabeça, no corpo todo, e ele começou a se contorcer e desistiu de pegar uma vara. Desistiu também de enfrentar-me. Recucou ainda se contorcendo, com o rosto enrubescido, mas sem chorar. Via-se que estava que era ódio vivo. Não admitia que tivesse sido escorraçado a chicotadas. Mas eu estava ali, teso, com escuma saindo pela boca, com a vara – que a esta altura tinha a ponta um tanto desfiada pela seqüência de pancadas – ainda em punho. Olhava para o Edvaldo, com fogo saindo pelos olhos. Então ele pegou sua bolsa de livros que estava logo ali, ao chão, e se foi para junto dos seus conluiados, que também não acreditaram.

Fez-se silêncio! Em silêncio todos se foram, e nós também. Tocamos o jegue para casa. Neste dia meu irmão e eu também íamos em silêncio, ouvindo apenas os barris de água rangendo nos ganchos e na ossatura da cangalha. Mas meu irmão tinha um ar de orgulho nos olhos. Eu ainda tremia, mas nossos olhos pactuaram que nada contaríamos aos nossos pais. E tínhamos certeza de que do outro lado nenhum deles relataria o ocorrido, afinal, a desonra era do Edvaldo e dos seus senhorinhos.
Dali em diante, fui tranqüilo para a escola e ninguém mais me incomodou.

domingo, 13 de janeiro de 2008

O B R A S * S U S P E N S A S

Josemar da Silva Martins (Pinzoh)

Aquele Homem agora inventa títulos para os poemas e livros que escreverá.

Primeiro os títulos: “rascunhos de mim”; “todas as vezes que fui embora”; “todas as vezes que ela disse não”... Vai anotando – e imaginando o percurso de cada narrativa, o enredo, as nuances dos seus personagens, e todos, no entanto, dizem respeito à sua vida. Tem enorme consideração por boa parte deles. Mas ainda não os premiou com esta segunda vida ilustrada, cuja morada é a própria literatura.

Por enquanto entretém-se com os títulos que vai inventando: “o rico pobre” – um tratado de sócio-antropologia em forma de literatura dramática, onde cogitará a hipótese de que os ricos de antes eram melhores, pois neles havia pelo menos alguma riqueza moral. Os ricos de hoje, geralmente pobres de ontem, são também pobres de espírito, deseducados, deselegantes... Mas o Homem não desenvolve os temas contidos nos títulos que inventa. Pelo menos por enquanto interessam-lhe apenas os títulos: Mira-os como se fossem obras de arte da pintura. Obras-primas visuais! Ou, por outra, demora-se nas sonoridades de suas pronúncias. De resto, se propõe a compor imaginariamente, linha a linha, cada uma dessas obras, sejam versos, sejam livros, romances. Imagina-os virando best sellers, liderando as listas dos mais lidos, ponto em que, daí em diante, terão a chance de serem adaptados para o cinema, etc., etc., etc.

Mas o que ele precisa mesmo é de dinheiro, está devendo, mas não quer se render a uma existência ordinária; não quer ser uma variação de rico pobre, ao que prefere ser o que sempre foi: um pobre rico! Alguns lhe apontam sem rodeios: “você só quer dar uma de rico”. E ele enforcando-se, ainda escolhe marcas de vinho e inventa ocasiões especiais! Então, se o que lhe falta é exatamente dinheiro – coisa que não deve faltar aos ricos, mesmo quando pobres – então imagina formas de ganhá-lo luxuosamente, por exemplo (e a título de sugestão), como um artista das letras, de sucesso. Um escritor!!! Mas versos – que é bom! –, necas!

Tem procedimentos parecidos quando se trata de mulheres. E também lastima as mulheres com as quais não rolou. Não rolou! Tinha tudo pra rolar e não, nada. Às vezes lastima o fato de ter ido para a cama com algumas delas e ter, literalmente, dormito no ponto. “Sono da bubônica!” – diria um chegado seu, desses que quase se pode chamar de amigo! Claro que essas desventuras soníferas foram raras, pois basicamente o que ele lastima é o fato de não ter colocado em prática aquele movimento estudado, que várias vezes elaborou, e tanto o repetiu em elaboração que tal movimento foi sofisticando-se aos poucos, até tornar-se um movimento refinadíssimo. E na hora H, cadê?

Gastara dias provendo de detalhes um encontro de alcova; prevendo como desceria os dedos pelo busto da moça, como roçaria a ponta do nariz em volta do umbigo, como farejaria os pelos pubianos, como a viraria de bruços para descer as mãos quentes pelos quadris, pela parte interna das coxas e descer até a panturrilha, o calcanhar, a sola dos pés, os entre-dedos; depois subiria devagar até esbarrar nas franjas de pele que entornam as regiões mais íntimas. E, vendo que ela havia se excitado, introduziria dois dedos em sua boceta, enquanto lançaria a língua em seu clitóris... Todos os preliminares foram por ele minuciosamente estudados e planejados, até que cada moça estivesse tão “ao ponto” que imploraria para ser possuída – “vai! Mete! Mete tudo, vai!” Mas ele ampliaria o êxtase apenas com introduções mínimas e sutis, feitas por trás, avançando um pouquinho mais a cada vez, enquanto arrebitava a bunda, e ele recuando um pouco para ouvir os suplícios da moça, já aos gritos: “Ai... Vai... Aaaiiii... Vai... Vaaaiiiii!”

Tanto tempo aquele homem gastou nisso que todas as mulheres se foram embora antes que ele concluísse tais elaborações; se foram embora com homens de movimentos menos refinados, porém mais práticos e mais ágeis. Ou de pau maior que o seu – que nem era lá essas coisas! Em geral ainda resignava-se: “elas não sabem o que perderam!”. Noutras acabava masturbando-se com a imagem de uma moça de cada vez na cabeça, que ele sempre trocava na hora de gozar. Masturbava-se com uma e gozava com outra... Noutras vezes apenas fez poema:

(...)
e enquanto isso
enquanto me acanho
outros são velozes
logo te abocanham
violam os instantes
atropelam tudo
(...)

Menos mal. Mas acabava fazendo poemas sem título, sem início nem fim! Aquele Homem agora não passa dos títulos para a obra; e parece que não passa da obra para os títulos – pelo menos não passa do fragmento do poema, querendo virar escrito literário, órfão de uma nomeação. Seu problema é exatamente este. Ele começa pelo final. Pensa as capas, as contra-capas, as epígrafes, as dedicatórias, os agradecimentos, a relação sumária dos temas, as partes, os subtítulos... Pensa o corpo que nem conhece ainda, o cheiro que não sentiu – e esquece-se, porém, do principal: o que colocar dentro! Dentro dos livros ou das moças! As histórias: é preciso escrevê-las. O corpo é preciso rabiscá-lo como uma página em branco à espera da narrativa.

De todo modo – é importante considerar! – imaginar possibilidades literárias já é um modo inventá-las um pouco, por um lado; por outro, é vivê-las, mesmo que em forma de delírio. Quem sabe, porém, um dia aquele Homem passe ao universo dos atos, que é outra forma de viver as narrativas, de fato.

L A B I R I N T O

Josemar da Silva Martins (Pinzoh)
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Fazia dias que eu estava prostrado naquela casa, imensa, vazia. Fora deixado nela ela, agora parecendo uma caverna quase luxuosa, aspecto que restou depois da subtração de sua mobília. Agora as palavras ecoavam pela casa, saiam batendo nas paredes como se quisessem povoá-las de outras vozes, mas sempre reverberavam nelas mesmas, ecoavam. Fiquei na casa apenas com meus livros e um quadro que paguei durante dez meses, como se estivesse pagando a prestação minhas falidas pretensões aristocráticas. Fiquei também com o sofá da sala e a televisão de vinte e nove polegadas. O sofá tinha forma de divã, e a TV era minha analista: parecia confirmar o que parece que eu tinha me transformado.

Passava o dia ali, comendo porcarias e vendo TV, como se meu mundo tivesse se resumido àquilo. Dormia, acordava, cochilava, me assustava, o sol entrava pela janela, invadia a sala, eu suava, me virava, mudava de posição... e a TV sempre ligada. Olhava alguma banalidade que ela me oferecia – nossa! Quanta banalidade a TV nos oferece! Voltava a dormir, sonhava entre um cochilo e outro. Mas os sonhos eram diferentes: pela manhã sonhava sonhos quase completos, em que eu estava em alguma ação que, mesmo sempre confusa, nela eu ainda tinha algum ânimo e mobilidade. Pela tarde, sobretudo quando o sol entrava pela janela e ardia em minha cara, tinha pesadelos. Nesses, eu geralmente estava dopado, drogado, ou nu. Alguma coisa ridícula sempre rondava esses tormentos em forma de sonhos-pesadelos. E eu acordava num susto ensopado de suor. Mas pela manhã tinha sonhos diferentes. E ficava na dúvida se não tinha sido durante a noite que eu os havia sonhado. Eu não sei. Agora tanto fazia ser noite, manhã ou tarde, eu estava sempre no sofá, entre restos de porcaria – coisas que eu comia; coisas que vinham da TV.

O sonho de hoje foi curioso. Sonhei que eu ficava cansado desta depressão de quem fora abandonado com alguns livros e algumas drogas – a TV sendo a principal – e resolvia dar uma volta. Ia a um boteco desses que nem sanitários têm. Era na orla velha, um bar improvisado entre aqueles casarios abandonados. Quando a gente queria mijar o garçom indicava um corredor ao lado, que ia dar no interior de uma dessas construções velhas e abandonadas. E não havia ali nem um vaso sanitário, nem um desses canis improvisados de cimento, que servem de mictório na maioria dos bares fuleiros como aquele. O jeito era fazer xixi ali mesmo, no pé da parede, na ponta dos pés para não sujar a barra da calça com a urina dos que vieram antes. Era preciso ficar na ponta dos pés, segurar o pau com uma das mãos e tapar o nariz com a outra. E depois, nem uma piazinha para lavar as mãos. Merda! Coisa de terceiro mundo! E a gente ainda tem orgulho disso! Vangloria-se dizendo que esse é “nosso jeito”, é a nossa “natureza”. Isso não passa de uma moral de jegue – como um dia me disse um amigo meu.

Mas o corredor prosseguia e eu resolvi andar um pouco mais nele, para ver onde ia dar. Houve algo. Alguma passagem eu acho que se deu ali. De repente eu estava numa enorme sala mobiliada em estilo colonial, com uma imensa mesa com todas as doze cadeiras, tudo coberto com plástico. Como se alguma cena tivesse que ser mantida intacta por anos a fio. Na parede atrás da mesa havia um quadro no qual estava estampada a imagem de uma família. Dava pra ver que era. Todos em pose nobre, com roupas galanteadas. Eram muitos. O pai, a mãe, alguns homens jovens, rapazes, deviam ser os filhos, e apenas uma moça. Entre o pai a mãe. Como rosto mais jovem ainda, com cara de quem era uma caçula. Uma única mulher e ainda caçula.

Mas havia mais que isto naquela imagem. Ela parecia reproduzir os lugares daquela imensa mesa. Mas aquela moça guardava traços e circunstâncias muito interessantes. Havia algum mistério em sua feição. Estava entre o pai e mãe, como se ambos estivessem lhe protegendo de alguma coisa. Ou como se ela fosse algum elo quase perdido. Em seu riso havia alguma distorção – como se fosse um alegre solo de guitarra no meio de uma 5ª sinfonia de Beethoven. Aquela imagem me arrepiava. Eu estava totalmente arrepiado. Não sentia os cabelos, os pelos. E mesmo assim eu permaneci ali, mirando aquela imagem, onde aquela moça parecia me mirar. Como se ela quisesse contar-me algum segredo: estivera esperando pos isso esses anos todos, sabe-se lá quanto tempo.

Mas esta sala não era no térreo. Não sei como, mas seguindo aquele corredor eu havia subido algum lance de escada, sem perceber. Ou então aquela sala havia se elevado comigo dentro dela. Talvez tenha sido naquele momento em que eu me arrepiei. Agora eu via que lá embaixo um guarda vinha à minha procura. Talvez houvesse alguma proibição em entrar ali e ficar especulando aquele espaço. Talvez ali estivesse reservado para turistas, que podem tudo – como diria Arnaldo Antunes, “e os turistas estragando todos os lugares”. Talvez estivesse lacrado para alguma inspeção que estivesse sendo aguardada há anos. Além do mais, eu jamais havia ouvido falar que naquele cais antigo, naquela orla abandonada houvesse um casario com tamanha pompa, uma espécie de castelo. Mas, o fato é que vinha o guarda à minha procura, com cara de poucos amigos, como é típico dos guardas e segurança – deve até ser algum quesito específico para a contratação! O guarda vinha! E alguma coisa me dizia que eu não deveria esperá-lo; que eu nem deveria procurar o caminho de volta, para voltar ao boteco por aquele corredor fedorento, e pagar a cerveja, que a estas alturas eu havia esquecido! Será que o cara é segurança do bar e, achando que eu dei o calote está vindo atrás de mim? Mas cerveja quente e corredor fedorento não são motivos para querer voltar. Eu deveria seguir. Os olhos daquela menina me diziam que eu deveria seguir... Para onde?

Avistei uma escada que descia para o outro lado, para o lado do rio. Desci a escada correndo! Quase deslizando nos íngremes degraus. Tudo estava um pouco escuro ali dentro, mas havia uma luz no fim da escada. Parecia o sol. Deveria ser o sol, que se põe para aquele lado... Desci, escorregava, deslizava, parecia uma escorregadeira. Pufo! Caí no fim da escada numa espécie de arraial interno. Como se fosse um quintal de uma grande propriedade, mas havia uma pracinha, com um bangalô no centro, e de uma dos lados o rio. Não era bem um bangalô. Era uma espécie de latada com banquinhos. Era uma estrutura antiga, por isso robusta, com pés-direitos redondos e grossos, feitos de tijolo. Com algumas flores nas bordas dos degraus. E havia bancos. Que alívio, havia bancos e eu estava exausto. Dirigi-me a um deles. E eis que nele havia uma moça, a moça da imagem da sala, o mesmo sorriso como uma distorção de guitarra em uma sinfonia clássica. A mesma jovialidade! E a mesma expressão de quem quer contar algum segredo. Olhava para mim! Queria me contar alguma coisa! Arrepiei-me!

Tocaram a campainha! Acordei suado! Assustado! Arrepiado! Em outra circunstância eu teria exclamado um “merda!”, mas naquele momento eu parecia ter sido salvo de algum destino trágico. Meu Deus! E a porra da TV ali impassível, vendendo suas porcaria. E eu as comprando! Abri a janela par ver quem era. Era uma moça, com o mesmo sorriso distorcido como um solo de guitarra. Dizia: “abre, por favor, querido, que eu esqueci a chave!”

C L A R I C E

Josemar da Silva Martins (Pinzoh)
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Poucos dias antes dela chegar por ali, correu o bochicho na redondeza de que viria uma menina morar com “mãe Gripina”. Cogitava-se que era filha de Preta de Espingardinha, fruto de um amor fortuito com algum homem cujo nome poderia ser João da Mata, ou qualquer outro. Pelo visto tal pai, com este ou outro nome, deixou filha e mãe ao relento. Pois então viria a menina, com seus sete anos de idade, morar com Agripina.

Os meninos, que não tardam a viver farejando cheiro de tanga de tudo que é menina, já inflaram o disse-me-disse. Coincidiu com o ano que iríamos para a escola, a de Baiana, tutelada pelo velho pai coronelzinho, de revólver no coldre e tudo. A menina morava com Agripina, que era esposa de um dos filhos do velho e, portanto, ia à escola com os seus agora “irmãos de criação”, netos do velho, sobrinhos da professora. Isso iria dar em confusão, mas por enquanto apenas a menina interessa.

No caminho da escola, onde as estradas se encontram, um pouco antes da casa grande da fazenda do velho coronelzinho, seja porque uns adiantaram o passo, seja porque outros remancharam um pouco, o fato é que os alaridos de todos possibilitaram o encontro. E lá ia ela, toda diferente do todos, calada, linda, com cara redonda e alva como lua cheia.

Meu coração de menino de nove anos já tinha se influído por outras meninas; eu já sabia o que era pelo menos trocar insinuações de ousadia com outras meninas, especialmente no encontro com outros meninos. Lucia, Bela, Alda, Guimar... Todas essas a gente vivia arriscando um lutrimento, se escondendo no mato para velas tomar banho peladas na cacimba. Mas a campeã era Evanilda, menina de corpo bonito, que em minha cabeça estava sempre vestida em um vestido verde cana, curto e com muitos babados. Todos nós tínhamos uma Evanilda particular, quando se tratava de fantasias eróticas. Fora isso, questões de sexualidade eram resolvidas por ali mesmo, entre brincadeiras de “cair no poço” com as primas, ou entre o algodoal, ou na areia do riacho, ou ainda em noite de lua – enquanto os pais debulhavam feijão ou se distraíam com as visitas – quando inventávamos um mundo de pai e mãe, só para experimentar alguma núpcia, atrás do feixe de caibros arrumados em forma de casinha.

Mas agora chegara essa menina para morar na casa de “mãe Gripina”. Linda, branca, cabelos negros, panturrilhas arredondadas e gestos delicados. Quem ousaria dirigir-lhe uma ousadia? Com ela o sentimento era outro. Bastou ela me pedir para fazer-lhe a ponta do lápis, para que eu me apaixonasse perdidamente por ela. Passei a andar com a imagem dela na cabeça, desde o momento em que as estradas se separam e cada um vai para o seu lado na volta da escola. Ao fim das tardes, antes ou depois de gritar as cabras nos pastos, subia na caraibeira mais alta para cantar algumas canções, certo de que o vento, que espalharia o alarido pelos quatro cantos da redondeza, também permitisse a ela ouvir e saber quem cantava. Vez em quando anunciava o nome próprio, para não haver dúvida na audição. Fazia isso até ouvir o berro do meu pai ecoando no baixio: “vem pra casa moleque!... casa moleque! ...moleque! ...leque! ... que!”. Cada fim de tarde eu queria antecipar a manha seguinte para re-encontrá-la lá onde os caminhos se fundem, ou na porta da escola. Então decidi dizer-lhe tudo isso numa carta, primeira, e já de amor.

Meu pai nos escolarizou antes de irmos à escola. Por isso mesmo, naquele primeiro ano de escola eu já me arriscava em escrever uma carta de amor. E escrevi. Derramei meu sentimento todo ali, preto no branco. Mas uma carta jamais é suficiente para caber todo o universo de sutilezas que inventamos em situações sentimentais com esta. De fato eu sonhava primaveras entre as caraibeiras floridas, a acrescentar bordas amarelas ao zigue-zague do riacho esturricado; ou então sonhava noites prateadas, depois das chuvas, entre os muçambês pretos, de caule remelento e flor branca, que faziam a roça ficar infestada de abelhas e besouros. Nas noites de lua cheia, eu e ela, de mãos dadas, corríamos e nos deitávamos naquele mar de flores brancas, entre as abelhas, besouros, vaga-lumes e outros insetos, que doavam alguma trilha sonora à imagem prateada, como uma coisa esponjosa e radiante, na qual afundávamos até a altura dos joelhos. Deitaria ali com ela, lado a lado, de titela virada para a lua, com as abelhas e besouros compondo curiosas melodias. E nem os caules pegajosos dos muçambês, nem o cheiro meloso de suas flores interrompeririam aquela felicidade prateada, minha e dela. Permaneceria ali, imagem congelada, que possa ser revista sempre que quiser, mas que daí não saia, para não corromper-se com outras realidades.

Nesses instantes, sexo era coisa impura demais para se misturar a tal imagem. Era coisa para apontar para outras garotas, com ou sem babados, ou até para alguma cabra velha, ovelha, novilha, jumenta, e outras tantas possibilidades mais ou menos nojentas de prática sexual com animais, coisa que muitos fazem nesses ermos de sertão, mas que pertence o universo das coisas inconfessáveis. Mas com aquela menina nada disso havia; a não ser aquela imagem congelada de um inferno de muçambês floridos feito praga, transformado em paraíso prateado para nós dois.

Por capricho dos destinos minha mãe, que escrevia e não lia, deu com a carta, escrita em mal-traçadas linhas, misturadas ao material da escola. Recorreu a alguém para lê-la, o que se sucedeu de forma mais mal-traçada ainda, mas, suficiente para ela entender do que se tratava e asseverar: “guarde ali na gaveta da máquina que eu vou mostrar pro pai dele”. A coisa ia se complicar. Esperei minha mãe se distrair e entrei na ponta do pé, peguei a carta, levei para o mato e rasguei em pedacinhos miúdos, depois os misturei com as folhas secas de marmeleiros e baraúnas. Mas quem leu a carta para minha mãe andou batendo com a língua nos dentes e no outro dia já se adiantaram os “irmãos de criação” dela, já nos insultos, querendo explicação. O velho coronelzinho já se enchei de gracinhas para perguntar: “já tá mijando pra cima, menino?”. Foi aquele bafafá e eu acabei me acanhando mais com a menina. Passamos a nos falar quase nada, muito raramente ela vinha me pedir que eu fizesse a ponta do seu lápis, e me olhava de raspão, com um quase sorriso pendurado num dos cantos da boca. Mas carta havia estragado tudo, ou quase tudo, principalmente porque não a entreguei, nem pude dizer-lhe como eram bonitas as minhas fantasias.

Minha mãe tinha uma banquinha de doces no mercado novo do povoado, ao lado da banquinha de “mãe Gripina”, que vendia um arroz doce com canela inigualável. Um dia minha mãe me pediu que ficasse na banquinha e, para minha surpresa, lá estava ela, a menina, com um vestido de estampas e laços no cabelo. Passei o dia do lado dela, ela vendendo as coisas da “mãe Gripina”, e eu vendendo as coisas da minha mãe. Raramente, um emprestava algum troco ao outro, e aquilo era pura felicidade. Eu comecei a solicitar à minha mãe que me deixasse ali na baquinha, todos os domingos. Embora não houvesse diálogos, e sempre aparecessem outros meninos insinuando alguma ousadia dissimulada, era eu que passava o dia ao seu lado. E isso era tudo.

Mas veio o dia em que meu pai voltou com a notícia de que iríamos embora. Mandou que juntássemos as cabras, ovelhas, vaquinhas em pele e osso, jumentos, peias e mochilas de dar milho, porcos e cochos, cachorros sem coleira e canários de gaiola, que no dia seguinte partiríamos. E foi o que se sucedeu. À tardinha gritamos os bichos no mato. Eles vieram todos para a malhada. Abrimos a porteira do curral para as vaquinhas, e a porteira do chiqueiro para as cabrinhas; o chiqueiro para os porcos, o cercado da palma para a burra e o jumento. No dia seguinte, cedinho, viramos retirantes.

Muito tempo depois voltei ao mercado daquele povoado e ela estava lá, ao lado da banca de arroz doce de “mãe Gripina”. Mas tinha crescido. Apareceram-lhe seios, bustos, bunda, quadris... Tinha-lhe estufado tudo! Cheirava a sexo. Os meninos olhavam para ela e apalpavam o saco, cuspiam virando a cabeça para o lado e esguichando o cuspe por entre os dentes, como marrões querendo virar pai-de-chiqueiro, lambuzando-se com suas próprias excrescências. Tava na cara que ela agora era a sensação das punhetas da molecada.

Quanto a mim, não era mais ela a menina que deitava comigo naquele tapete prateado de mucambês floridos em noite de lua cheia. Não era mais a menina por quem meu coração acelerava quando vinha pedir-me que fizesse a ponta do seu lápis, quando então eu sentia o cheiro, ouvia a voz, e quase roçava a sua pele. Eu achava que no dia em que isso me acontecesse eu empedrava. E eu desejava isso – que permanecia apenas um grande mistério, um grande delírio. Mas, agora, ela não era mais a pessoa para quem escrevi minha primeira carta de amor. Não era mais!